right_side
In:

A diáfana menina não tão incrível.

Por volta das doze me tornei crível. Acho que me perdi de vez, usei meias palavras para me distanciar daquilo que me afligiu. É um tanto incompreensível , de quando em quando mergulhava nas mais fortes dores do passado e passando por cima das minhas próprias conclusões, chorava termos que geravam uma conduta esquisita. Ele me ama, ele me ama. Um fato tão forte, eu nunca acreditei. E rolando sobre uma mesa de agulhas, sensação a qual aquelas palavras me proporcionavam, senti que meu sangue se punha a esquentar. As palavras soaram doces e brutas em minha mente, mas em seu pobre coração não tinham justificativas, eu estava sendo repugnante e grosseiramente insensível. Mas foi pelo bem, me conheço melhor que qualquer um. Ao levar a caixa de papelão amassada, com cheiro de calabresa e tempero, casa a fora, sem chinelos, meus pés pareciam se fundir ao chão gelado. Eu sou fria, concluí. Mas fria, dura e seca como um bloco de gelo, não como uma fofinha bola de neve. E aquele pequeno e pobre coração estava me desejando, eu não queria ser má, realmente não queria. Mas não havia outros meios, eu sabia da minha repugnância, da minha angustia e descontentamento, sabia que não o amava. Não havia outro jeito, antes causar deveras ódio por mim do que permitir que sinta a dor se apontar mais em meio à verdade que rondava pela minha mente. Eu não apenas tinha medo, não apenas não era tão forte. Não existia, nem da maneira mais fraca. O único sentimento que havia sobrado era a saudade do que já foi... E a pena. E como prova da árdua frieza que me tornei, dormi como um pétala que cai ao jardim. Leve, bela, fria e sem som. E ele ainda me amava.
Tamyris Kortschinski.

In:

Lágrimas entorpecidas.

Ela havia acordado no meio da madrugada, no meio da escuridão. Estava suando. Percorreu a casa a procura de alguém dormindo, olhou cada cômodo, mas estavam todos vazios; então seu coração disparou e a boca abriu-se, desnorteada. Uma onda de desespero a dominara, devem ter me abandonado.
Não queria aceitar de jeito nenhum aquela idéia. O estado de choque a deixara sem reação, e agora ela parecia estar embriagada com a conclusão que havia chegado. Deu um passo desajeitado e de repente lembrou-se que estava havendo uma pequena comemoração em sua casa, um andar a cima; mas o sono havia chegado e ela não hesitou em ir para seu quarto. Lembrou-se exatamente de sua pequena família reunida ao redor de uma redonda mesa de vidro jogando papo fora, comendo petiscos e bebendo vinho. Exatamente como se faz nos dias frios.
Estava aliviada e com certa esperança; mas, infelizmente, como esperado, tudo converteu-se em terror ao terminar de subir as escadas. De uma porta entreaberta, viu um clarão abafado. Caminhou até ela e escancarou a detalhada peça de madeira. O salão estava lambido em fogo.
Covardemente, aquele cenário agora tomava conta de sua mente, sufocando suas esperanças. Não sabia como acontecera aquilo, mas o que estava diante de seus olhos era real. A vontade dela era mergulhar naquele mar vermelho para ver se encontrava sua família para tirá-la de lá ou para simplismente juntar-se a ela.
As chamas a chamavam, faziam um convite assustador. Irrecusável. Penetravam inconfundíveis os olhos da menina hipnotizada. Só precisava de um empurrãozinho para juntar-se eternamente em cinzas à sua família. Definitivamente.
Não estava decidida, mas não sabia o que fazer. Seu corpo magro inclinou-se para o grande monstro que a envolvia com seu hálito quente, mas antes que seu fim estivesse decidido, duas mãos firmes surgiram e a seguraram pelo braço com determinação e tristeza. Ela virou com uma expressão de pavor na face; pensava que era a única ali. Era seu pai, o olhar emocionado, o cenho desapontado. A filha retribuiu o olhar com lágrimas pesadas que faziam desenhos na face de porcelana.
Tinham que sair do meio daquele inferno, então o pai segurou a filha pela mão e começou a andar em direção à porta. Ela o acompanhou e deu uma última olhada para trás. Olhando seu rosto, podia-se ter certeza que estava se despedindo, não os veria mais. Deixou mais uma lágrima cortante cair e teve que partir.

Isabella Franca.

In:

Onda de palavras.

Foi em um daqueles momentos que te fazem borbulhar a alma, a inspiração pairou no segundo em que as forças caíram ao chão. Pareciam lençóis, lençóis que por tão pouco longo tempo me cobriram. O sangue corria forte pelas veias, mas se de cobaia eu participasse de um teste, naquele momento, posso garantir que meu diagnóstico seria de morto. Sem pulso, sem ar, sem voz. Encabulei-me por horas em um quarto, uma força pairou sobre meus ombros e eu sentia o peso da consciência inteira de uma humanidade. A dor me consumia inteiramente, eu queria estraçalhar cada linha de vida que tão pouco restava em mim. E a partir desse englobamento de rancor e dessa ternura para com o sofrimento surgiram palavras nunca vistas, qualquer caneta que me falhasse a escrita levaria um toco para bem longe. Meu corpo afundava em um oceano de lágrimas, cada pequena palavra, sílaba e artigo recebiam um olhar faminto. Rabisquei meus próprios lábios até que vazasse do mais puro sangue, um sangue quente que ia contra a corrente fria que me cobria. Em meio a tantos novos condimentos, meus olhos estavam fechados, e como ultima fresta de suspiro, ingeria cada palavra daquele mar. Meus pulmões se enchiam de uma água salgada, minha face chegava cada vez mais perto do fundo rochoso daquele cenário e então prescrevi, eu havia sido atacada e derrubada pela onda de palavras mais grosseiras e tenebrosas que eu já havia visto. E foi assim que começou, assim que começou a carreira de tormento em que qualquer inibição e sentimento... Transformar-se-iam em arte.